Mundo do nariz vermelho: "O nariz do palhaço representa os olhos, e os olhos representam a alma..."


Mundo do nariz vermelho

"O nariz do palhaço representa os olhos,
e os olhos representam a alma."

Mayra Lopes*

Segundo relatos lendários os palhaços existem há mais de quatro mil anos, mas é algo deveras complexo conferir um momento, mesmo que histórico, para o surgimento do palhaço. Sua origem deve se confundir com a origem do riso humano, do ser que se empenha em alegrar o que sofre, o outro.

Na corte oriental o palhaço tinha uma função social que podia fazer inclusive o imperador alterar suas resoluções.

Lubyet, é uma palavra que significa homem frívolo, foi usada como designação dos palhaços da Ásia, que apareciam em teatros, apresentações religiosas e junto da realeza.

Na Malásia, os palhaços usavam máscaras de bochechas e sobrancelhas enormes, coloridos e com turbantes.

Com apenas um palhaço, é mais difícil fazer rir, a comicidade fica no âmbito da imitação, porém, os palhaços asiáticos e divertidos que ainda se pode ver são os “irmãos Penasar e Cartala”. Penasar comporta-se bem e é preocupado e angustiado, enquanto que Cartala faz tudo ao contrário. Essa discrepância de comportamento acaba por surpreender e provocar o riso.

No teatro da Grécia antiga, havia o hábito de após da encenação da tragédia o palco ser invadido por palhaços para apresentar sua versão dos fatos e fazer o público rir, para que não fossem com o pesar da tragédia pra casa. Tais palhaços centravam-se em ridicularizar exatamente o herói, conforme o anti-herói de Mário de Andrade, o Macunaíma. Segundo achados antropológicos, Hércules era o herói preferido dos palhaços que mostravam que os doze grandes feitos eram nada mais, nada menos que uma sucessão de coincidências e sortes.

Ao analisar tal fato, pode perceber-se que o palhaço tem uma função simbólica significativa, mostrando para a população que por vezes ela não é culpada de seu padecer, jogando a responsabilidade dos grandes feitos de heróis nas mãos dos deuses. No âmbito psíquico, isso faz com que seja diminuído o sentimento de culpa que resulta no sofrimento do indivíduo, e, ajuda a elaborar o luto da difícil situação ou do sofrimento. É por isso que palhaçadas aliviam a alma.

Para corroborar com tal informação, cita-se a obra “Pequeno tratado das grandes virtudes” de André Comte-Sponville: “O humor é uma conduta de luto (trata-se de aceitar aquilo que nos faz sofrer), o que o distingue de novo da ironia, que seria antes assassina. A ironia fere; o humor cura. A ironia pode matar; o humor ajuda a viver. A ironia quer dominar; o humor liberta. A ironia é implacável; o humor é misericordioso. A ironia é humilhante; o humor é humilde”.

Também na Roma antiga apareciam os diversos tipos de palhaços, com palhaçadas simples e infantis que faziam o público rir. Os palhaços podiam fazer o que o público tinha vontade, mas não tinha coragem. Cicirro, por exemplo, era um palhaço com touca de cabeça de galo que abria as asas e cacarejada e, Estúpido usava roupas de retalhos e os demais atores ficavam indignados com eles e lhes davam pancadas, o que causava riso. Quem nunca teve vontade de bater em alguém bobo? E assim, por realizar brincando um desejo oculto do público o episódio era um sucesso em risos.

Nas palavras do grande palhaço Charles Chaplin: "Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando, falei muitas vezes como um palhaço, mas jamais duvidei da sinceridade da platéia que sorria".

Com o fechamento dos teatros na idade média, e com a postura clérica de que o riso era pecaminoso, os artistas passaram a fazer seus números em feiras. Na Escandinava e Alemanha os palhaços eram denominados “gleemen”, e na França “jongleurs” que é sinônimo de malabarista. O palhaço era um artista que mesclava números de malabarismo, mímica, acrobacia, e contavam contos e cantavam cantigas. Em festividades, os grupos consistiam na principal apresentação das feiras, e os palhaços eram responsáveis por levar bolas presas em barbantes para ir batendo no público abrindo espaço para o número dos bailarinos. Podiam ainda levar vassouras e sair gritando pedindo espaço para as cantigas. Decerto as palhaçadas eram mais divertidas que as trovas.

Como a idade média é permeada por luta de poder e uma grande imposição de medo na população, tanto por parte da monarquia quanto por parte do clero. E, como não há de se viver sob tanto medo sem consolo a palhaçada floresceu nessa época, atingindo inclusive a corte na figura do bufão, ou bobo da corte, esses palhaços do palácio eram inteligentes sob o disfarce de estúpidos para alegrar a nobreza e fazer críticas a situação social. Afinal, quando a verdade vem disfarçada de brincadeira é mais aceita, e vai fazendo seu papel no inconsciente dos indivíduos.

Durante a idade média na Alemanha os palhaços subiram de status social sendo considerados alegres conselheiros, uma vez que falavam sobre uma realidade dura e desconhecida para a corte, mas de uma forma engraçada, sem cobranças e sem dores.

No fim da idade média os teatros aos poucos foram reabertos, com temáticas e representações de cunho religioso, ironizando a condição de criatura pecadora do ser humano. Havia preferência de que o narrador fosse um palhaço, porque com o riso o público não se cansava da encenação.

Foi com Shakespeare que os palhaços passaram a ter importância no teatro, porque o palhaço que outrora só fazia rir passa a fazer o público chorar nas tragédias assumindo conotações dramáticas.

Na Itália do século dezesseis, surgiram companhias que se tornaram muito populares com a “Comédia da Arte”. O palhaço passa a adquirir um perfil próprio, uma fantasia que o tornava um personagem reconhecido, bem como seus hábitos e características singulares. Tais personagens tornaram-se mais famosos que os atores até perdiam sua identidade diante do público, sendo reconhecidos pelo papel que desempenhavam tal qual ocorre com as novelas na atualidade.

Assim as trupes se estenderam pelo continente europeu, sofrendo adaptações que geraram nomes célebres na história, como o Pierrot que chegou até a atualidade.


O circo moderno como é conhecido foi criando pelo sargento Philip Astley por volta de 1766, com atrações que usavam animais como cavalos, e apresentações divertidas. O palhaço mais importante foi “Mr. Merryman”, que atuava a cavalo.

Só posteriormente surgiu o palhaço branco vestido com roupas brilhantes e gorro, o palhaço “clown”.

A partir daí os tipos de palhaço se distinguiram havendo o palhaço “augusto” que é o desajeitado e extravagante, o “toni” que é excêntrico, e todo tipo de arquétipo que causa riso. Surgiram também os números clássicos de palhaços ainda são vistos no circo. São eles: “O barbeiro de Sevilha”, “A estátua”, “A água”...

Já no século dezenove, os palhaços passaram a montar espetáculos de cunho teatral baseados nos clássicos da literatura mundial.

A figura do palhaço hoje está presente em brinquedos, no circo, nas ruas, no cinema, na TV, em eventos, e atingiu os Hospitais.

O indivíduo parece descobrir que onde tem vida humana é necessário o riso, e para tal a criação de novas formas de se fazer rir, o empenho de pessoas para fazer rir. Para tornar os sofrimentos da existência, que não são poucos, suportável.

Esse é o pilar que une a medicina aos primeiros palhaços, ao primeiro riso. Pois, a medicina cuida do outro, do outro doente, fragilizado, que precisa de remédios, carinho, companhia, conforto, consolo.

Mas como o ambiente hospitalar possui regras impostas pelos processos do adoecer, do cuidado com a doença, os palhaços que vão para o hospital precisam ter conhecimento em ambas as áreas, a de fazer rir e a do cuidado com a saúde.



Afinal, é preciso olhar clínico para cuidar do corpo, mas também é fundamental o posicionamento da arte para aliviar a alma.

Reproduzido de Mayra Lopes
13 de mar 2009

* Mayra Lopes de Almeida Reis é Acadêmica de medicina e teologia, estudiosa de distúrbios do sono. Com formação em hipniatria, já fui instrutora de curso de primeiros socorros e pesquisadora cemiterial. Atualmente sou cientista recebendo bolsa pela FAPEMIG, ex-presidente do "Projeto Humanizarte" e da "Liga de Genética Médica e Malformações Congênitas" da FMIt. Fundadora e ex-presidente da Liga de Medicina Baseada em Evidências. Graduo-me com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Buscando atuar, pautada em princípios éticos, nos processos de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, para assim promover a saúde integral do ser humano.

Fonte: Lattes

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